Ricardo Almeida
A discriminação de gênero perpassa por vários setores da sociedade e no contexto histórico atravessa os séculos, registrando manifestações de resistência e evidenciando representatividades. Conhecer um pouco mais desse cenário ajuda a mudar concepções ultrapassadas, as quais já não devem mais fazer parte do consciente coletivo e do convívio social.
Para compreender porque esse assunto também se associa ao tema meio ambiente, que tal, antes de prosseguir com a leitura do texto, você fazer uma reflexão sobre isso por alguns instantes? Tente se concentrar na questão e formular respostas para si mesmo. Esse é um bom exercício a ser praticado quando nos deparamos com situações que requerem de nós um posicionamento. Com base em pensamentos filosóficos, podemos dizer que esse ato é uma aplicação cuidadosa da razão que nos ajuda a decidir em que acreditar e como agir no nosso dia a dia. Não há certo ou errado nessas reflexões, o importante é estarmos abertos ao encontro das diferentes ideias.
Na tentativa de responder a nossa questão disparadora, podemos entender que o meio ambiente não se limita apenas a fatores relacionados à fauna e flora, mas a outras questões mais amplas. Sem a intenção de esgotar as possibilidades de conceituação do tema, tomamos aqui, como referência, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que em seu art. 3º, I, conceituou meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Partindo dessa concepção, podemos notar que meio ambiente consiste em um sistema complexo, tendo como núcleo a própria vida. Nesse sentido, a representatividade social indica um fator de influência preponderante nas interações dos indivíduos. A mulher do campo constitui um dos elementos que integram esse conjunto de interações e mantém importante representatividade nas formas de preservação do meio ambiente.
Para muitas pessoas, falar da comunidade do campo limita-se à ideia romântica de viver em uma roça, sítio ou fazenda. Mas, será que é só isso? E se falarmos sobre a mulher campesina? Sabemos quem são elas? Como vivem? Quais as lutas dessas mulheres acerca das questões ambientais?
Uma pesquisa realizada por Vasques (2009) mostrou que desde os anos 50 temas como agricultura familiar e reforma agrária são discutidos; no entanto, não é lançado um olhar mais atento para as pessoas que vivem no campo, sobretudo, a respeito dos seus sonhos e desejos. E quando o foco é direcionado para as mulheres do campo, essa constatação torna-se ainda mais latente. Relatórios publicados pelas Nações Unidas apontam que a questão de gênero também está instalada na área rural, fazendo com que a mulher do campo seja cada vez mais invisível.
Estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelaram que mais de 50% das mulheres que trabalham no campo não usufruem de rendimentos da produção, ou seja, apesar de trabalharem duro na lavoura, não recebem pelo que fazem. Quando a temática é violência, o quadro fica ainda mais assustador. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência às mulheres da área rural no mundo, decorrente de agressões físicas, sexuais e psicológicas, além de situações de exclusão econômica e de dificuldade de acesso a políticas públicas, é algo preocupante. As mulheres do campo são mais submetidas à violência doméstica do que as mulheres da área urbana. No Brasil, esses números chegam a 37% no campo e 29% na cidade.
Considerando esses registros, podemos perceber que a representatividade também é uma questão ampla e, por isso, torna-se necessário um foco específico para tratar o tema. Nosso intuito aqui é dar visibilidade à jornada da mulher do campo, suas lutas, sonhos e conquistas, bem como sua representatividade nas questões socioambientais.
Gênero e meio ambiente são temas contemporâneos e receberam atenção na Declaração do Rio/1992 - princípio 20, onde foi destacado que as mulheres desempenham papel fundamental na gestão do meio ambiente e no desenvolvimento. Entretanto, o que ainda se observa é que os discursos evidenciam a importância do protagonismo feminino, mas na prática cotidiana, isso tem ocorrido de forma muito superficial, necessitando avançar nos processos de tomada de decisão que envolvem políticas ambientais.
A agrônoma Elizabeth Cardoso, que atua no Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, relatou que o trabalho doméstico das mulheres do campo é considerado como algo não produtivo e muitas vezes é confundido com o trabalho da agricultura familiar. Essa imagem equivocada da mulher do campo gera a impressão de que as mulheres são apenas donas de casa, o que não é verdade. Ao observar a rotina dessas mulheres, a agrônoma descreve que elas não podem passar o dia todo na lavoura em razão de outras atividades que assumem: acordam mais cedo que o marido, fazem café, continuam trabalhando em casa, vão para a roça, levam o almoço para o marido, capinam ou fazem outra atividade, cultivam horta, árvores frutíferas e criações de pequenos animais como galinhas ou porcos (itens fundamentais para o consumo próprio da família e venda de excedentes).
Atendimentos à saúde também são problemas enfrentados pelos moradores do campo. De acordo com a agrônoma, a contaminação por agrotóxico é frequente nessas comunidades, pois mesmo quando aplicados com uso de equipamentos de proteção, ao lavarem as roupas dos maridos, as mulheres se contaminam, uma vez que não usam equipamento nessa atividade. Outra questão destacada refere-se aos casos de depressão nas mulheres do campo, consequência de efeitos dos agrotóxicos no organismo ou por conta da idade, pois quando mais velhas essas mulheres não se sentem valorizadas.
Esse cenário de recursos e equipamentos escassos soma-se à ausência de lazer no campo. Isso só reforça a ideia equivocada de que o meio rural é somente um espaço de trabalho e produção agrícola. Vasques (2009) afirma que esse é um dos fatores que tem gerado conflitos, carências e sentimentos de inferioridade e de impotência à população do campo, sobretudo, causando adoecimento psíquico.
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Apesar de tantas histórias de negação de direitos às mulheres e homens do campo, ter sonhos é uma forma de resistência e motivação para seguir em frente e conquistar espaço de voz. Particularmente, tenho acompanhado isso de perto depois que ingressei na Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Uberaba-MG). Neste meu mais novo desafio, procuro conhecer um pouco mais das histórias da população campesina e, ao lado de professores competentes e colegas que residem no campo, me sinto acolhido com tantos saberes científicos e tradicionais. A partir desse encontro com o conhecimento, quero compartilhar duas breves histórias de mulheres fortes e batalhadoras, que tive a oportunidade de conhecer durante o curso. Elas representam a resistência da mulher do campo que não sucumbe às adversidades da vida. Essas mulheres seguem firme na realização de seus sonhos e suas histórias podem ser uma referência importante para tantas outras que desejam ter mais visibilidade na sociedade.
A primeira história é da campesina Maria do Horto, uma mulher que desde criança acompanha movimentos sociais dedicados à luta pela democracia de direitos. Nascida na região nordeste do Brasil e filha de índio, Maria tem sua história de vida marcada pela exclusão social e ausência de recursos básicos que validariam sua dignidade enquanto cidadã. Contudo, mesmo diante de tantos obstáculos que não lhe condicionam um acesso de qualidade à saúde e educação, hoje, ela conquistou seu espaço na universidade pública e batalha para superar as dificuldades impostas pela pandemia. Ela faz o possível para conseguir acompanhar o ritmo das aulas remotas, mesmo sem ter energia elétrica onde mora. Maria é uma mulher assentada, que tem entre outras atribuições a responsabilidade pela infraestrutura de sua comunidade. É uma mulher que não se lamenta da vida e não se abate com os desafios do cotidiano, ao contrário, compartilha suas experiências e seus conhecimentos com os colegas e professores, trazendo em sua fala palavras de resistência e esperança por dias melhores.
Maria do Horto (á esquerda) - Arquivo pessoal
A segunda história é de Cleonice Silveira, uma jovem do campo que viu sua vida se transformar por meio da educação. Egressa da Licenciatura em Educação do Campo da UFTM e mestranda em Educação em Ciências e Matemática na mesma universidade. Nascida em uma comunidade do campo da região norte do estado de Minas Gerais, Cleonice faz parte de uma população que tem como principal prática social econômica a produção de goma (polvilho) e farinha, derivados do cultivo da mandioca. Além disso, sua comunidade mantém expressões culturais como o festejo dos Santos Reis, as fogueiras de São João, as danças de quadrilha e a festa da padroeira da comunidade. Cleonice aprendeu desde cedo a lidar com a agricultura e a enfrentar as dificuldades para ocupar uma vaga na escola do campo, e mais tarde na universidade pública. A participação das mulheres tem se intensificado na prática agrícola de sua comunidade ao longo dos anos e um dos maiores desafios que elas enfrentam é lidar com o trabalho braçal e a pouca valorização da produção. Tanto a saúde como a educação foram (e continuam sendo) negligenciadas nas políticas públicas voltadas para as comunidades do campo. No entanto, Cleonice ressignifica os entraves e afirma sua resistência dizendo que, apesar de tudo, ela “sempre vai desenhar uma visão romântica de como é viver no campo, pois se sente acolhida e segura vivendo em comunidade”.
Cleonice Aparecida Silveira. Foto: arquivo pessoal
A representatividade da mulher do campo, além de ser importante para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas principalmente para as comunidades rurais, também se faz presente nos enfrentamentos socioambientais do planeta. Essa representatividade é fundamental para promover mudanças no cenário mundial sobre o meio ambiente. Dados do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC - Intergovernmental Panel on Climate Change), revelaram que as mulheres compõem mais de 70% do total de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza e em situações de vulnerabilidade por conta de secas e inundações.
Embora a equidade de gênero ainda seja um desafio no cenário político, o Brasil tem excelentes exemplos de lideranças femininas, a exemplo de Bertha Lutz (1894-1976), líder na luta pelos direitos políticos e emancipação das mulheres brasileiras. Alzira Soriano (1897-1963), primeira prefeita da América Latina, eleita em Lajes, no Rio Grande do Norte, em 1928, cujo governo ficou marcado pela construção de escolas e obras de infraestrutura, como estradas que ligavam a sede do município aos distritos. Antonieta de Barros (1901-1952), primeira deputada negra do Brasil, ativa defensora de uma educação de qualidade para todos e pelo reconhecimento da cultura negra.
Nas causas socioambientais, Maria do Socorro da Silva é uma legítima representante das mulheres do campo e luta pela preservação do meio ambiente ao lado de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. A brasileira é uma líder comunitária que reside no estado do Pará, um dos mais letais para ambientalistas no Brasil. Sua luta pela conservação da Amazônia e pelos direitos das comunidades locais, se faz em múltiplas causas: contra a Hydro Alunorte, refinaria norueguesa em Barcarena; contra a Albras, maior fábrica de alumínio do país (ambas já multadas por vazamentos de rejeitos nas regiões onde estão localizadas, precarizando o ecossistema e as populações próximas); contra políticos e investidores que por vezes fazem uso da grilagem, expulsando pequenos agricultores e comunidades locais de suas terras em favor do agronegócio e dos latifúndios (THE GUARDIAN, 2018).
Ativista quilombola Maria do Socorro da Silva
A representatividade da mulher do campo é algo que precisa ser visto com mais atenção no Brasil e no mundo. Urge mudar as estatísticas que revelam sinais de violência no protagonismo que busca diálogo e equidade social. A defesa do meio ambiente não se faz pelo uso da força e ameaças que almejam o silêncio de comunidades inteiras. “Uma voz de advertência ao telefone, uma invasão doméstica, um soco no rosto, um cano de pistola cutucado contra o ouvido”. É assim que a intimidação de Maria do Socorro, e de tantas outras Marias que estão espalhadas pelo mundo, acontece. Isso tiraria o sossego de qualquer pessoa. “Elas” poderiam estar apavoradas, mas seguem firmes nos seus objetivos e vêm logrando êxitos na defesa do seu povo e do meio ambiente. Já houve avanços significativos, mas elas e cada um de nós ainda temos um longo caminho a percorrer.
Ricardo Almeida
Doutor em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Mestre em Inovação Tecnológica. Especialista em Gestão de Pessoas e Negociação Coletiva. Atua nas áreas de Desenvolvimento Humano e Educação Ambiental.