Ricardo Almeida


Momento em que os custos cedem lugar aos valores



Fato é um termo que expressa a ideia de uma situação real, objetiva e que pode ser verificada. Julgamos se um fato é certo ou errado a partir dos nossos valores, interesses ou experiências. Nesse sentido, em momentos de incerteza é comum que as pessoas criem opiniões sobre determinados assuntos, mas isso não altera um fato, apenas atribui a ele um juízo de valor.

Na área de Meio Ambiente, há décadas os fatos têm sido evidenciados e debatidos, consolidando-se como fonte de informação para a tomada de decisão. Contudo, esse cenário, onde estão escancaradas as mazelas do desenvolvimento produtivo acelerado e do uso desmedido dos recursos naturais, tem se caracterizado, predominantemente, pela circulação de notícias e alertas às autoridades e sociedade civil, sendo muitas vezes banalizados ou distorcidos por algum juízo de valor. A questão é que as sociedades contemporâneas estão fazendo muito menos do que poderiam e, sobretudo, do que deveriam fazer para enfrentar os grandes problemas socioambientais que já se encontram instalados na vida real.

Embora os desafios socioambientais continuem avançando por meio de discussões, novos acordos e alguns esforços importantes, o ano de 2020 chegou surpreendendo o mundo com o surgimento de uma nova ameaça à humanidade: um vírus letal, pouco conhecido pela ciência e com poder de contaminação em massa. É como se um passo sutil da natureza revelasse a dimensão da nossa vulnerabilidade, oportunizando-nos a perceber que a vida é o nosso bem mais precioso.

É justamente nesta hora que as (in)diferenças caem por terra, revelando, sem pudor, que só o discurso não é o bastante. É preciso mais que isso. A cooperação mútua entre homem e meio ambiente não pode continuar sendo uma falácia, e deve ser transformada em um fato concreto capaz de estabelecer valores universais. Em momentos de crise como este de pandemia é que a virada de chave acontece, fazendo com que os custos se tornem secundários, dando lugar a valores, como liberdade, justiça, paz, respeito, solidariedade e honestidade. 

Enquanto pesquisadores buscam a cura, o cotidiano das pessoas no mundo todo é desacelerado e modificado. De repente, menos trânsito nas ruas, escolas vazias e isolamento social. Em que pese as necessidades do momento, são medidas transitórias, mas com poder de provocar alterações permanentes nos modos de vida de todos os povos.

Especialistas apontam mudanças importantes que tendem a se consolidar no mundo pós-pandemia: a força do comércio digital, a educação à distância, o trabalho remoto, os avanços na área da biotecnologia, os novos formatos de turismo e das interações sociais, os enfrentamentos da desigualdade social (que ficaram mais expostas com a pandemia), maior engajamento dos cidadãos com a política e a revisão dos valores de mundo.

É possível que este momento de pandemia nos ajude a reconstruir uma relação mais participativa com as questões políticas, sociais e ambientais. Por outro lado, pontua o professor Durães (UFRB), é preciso cuidado com a supervalorização desse fenômeno, pois não será totalmente bom ou totalmente ruim, haja vista que nenhuma visão total resolve a questão.

Todavia, surge uma questão importante em meio a todo esse arranjo: como ficará a economia a partir de um cenário crítico como este? Sabemos que o sistema econômico ocupa um espaço fundamental na governança de qualquer nação e, sem intenção de aprofundarmos no tema, é certo que diante da gigantesca crise na saúde mundial a área financeira de muitos países ficará seriamente prejudicada. Entretanto, o que está em jogo não é apenas situação econômica dos países, mas sim toda a estrutura que sustenta a vida em sociedade.

Por isso, é importante manter a consciência de que os aspectos econômicos, socioambientais e de saúde pública sempre estiveram, estão e estarão inter-relacionados. Se perdermos o controle da pandemia, a economia se desorganiza ainda mais e, além do lamentável quadro de perda de vidas, o agravamento de uma recessão pode ser maior do que está sendo projetado. Ao contrário, havendo colaboração mútua entre governo e sociedade, ficará mais próspera a trajetória de retomada.

Esse é um argumento que contribui significativamente para uma tomada de decisão que considere a ideia de que não devemos fazer uma retomada econômica sem controle e desprovida de novos aprendizados, em que empresas aceleram a recuperação econômica a qualquer custo.

Essa estreita dependência entre economia, meio ambiente e saúde ganha foco na atual crise e pode ser observada nas próprias medidas de quarentena adotadas, que embora gere ameaças à economia, são positivas para a saúde das pessoas e para a fauna e flora silvestres. O desmatamento, por exemplo, ilustra bem essa inter-relação e pode nos ajudar a compreender a origem de alguns fenômenos que atingem todo o sistema.

Os desequilíbrios causados pelo desmatamento irregular agridem o meio ambiente de tal forma que provocam impactos econômicos e sociais de grandes proporções, dentre eles a alteração do regime pluviométrico, que reduz a oferta de água e estimula secas e inundações, e a liberação de vírus existentes nas florestas, que podem ser transmitidos e causar doenças infecciosas graves ao ser humano.


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Estudos científicos concluíram que quando um vírus que não fez parte da história evolutiva do homem migra de seu hospedeiro natural para o corpo humano pode haver grandes danos à saúde das pessoas infectadas, podendo levar a morte, embora o corpo humano tenha mecanismos próprios para lutar contra a infecção. Por outro lado, se isolados e em equilíbrio no seu habitat, como as florestas fechadas, os vírus não são uma ameaça. O problema surge quando esse reservatório natural passa a ser recortado, destruído e ocupado.

Entre outros efeitos diretos ao meio ambiente observados neste período de pandemia, podemos destacar a diminuição da poluição na atmosfera, registrada principalmente com a queda da movimentação nas grandes cidades. Um estudo da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, concluiu que a melhora da qualidade do ar na China, em razão da redução de poluentes desde o início da pandemia, evitou aproximadamente 50 mil mortes prematuras.

É claro que esse quadro não significa que a pandemia faz bem ao meio ambiente, mas demonstra que existem vulnerabilidades sistêmicas e que elas persistirão caso a retomada das atividades no mundo prescinda de mudanças estruturais. Não é uma questão fácil, muitos indicadores estão envolvidos nesse panorama de crise e devem ser considerados: pessoas perdendo salários e meios de subsistência; empresas com dificuldades em manter seus negócios; moradores sendo despejados de suas casas, sem lugar certo para acomodar a família; pessoas que estão doentes por outras causas e não puderam ser tratadas neste momento em razão da prioridade no uso de leitos dos hospitais; corrupção a solta em plena época de socorro à população. Esses são alguns dos sintomas sociais que despertam, de forma cruel, para a necessidade de mudanças urgentes. 

Um outro impacto observado refere-se ao aumento da geração de resíduos domésticos e hospitalares. De acordo com cálculos da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), a produção de resíduos domiciliares pode aumentar entre 15% e 25%, enquanto a de lixo hospitalar pode aumentar em até 20 vezes em todo o país.

Trata-se de um quadro que poderia ser amenizado caso a população já tivesse se apropriado da cultura de separação e destinação correta de resíduos no ato de descarte, haja vista que a maioria desse material é reciclável e ainda estão sendo direcionados para os lixões ou aterros sanitários. Esse é um fato que reforça a educação ambiental e os sistemas de cooperativa de recolhedores de recicláveis como meios sustentáveis e promissores a serem incluídos na lista de prioridades tanto do poder público quanto da iniciativa privada, ainda que essas alternativas não sejam uma novidade.

No caso específico da poluição, há melhores meios de manter a qualidade do ar, a exemplo da adoção de fontes de energia mais limpa. Já o combate aos desmatamentos irregulares carece de vontade política, de apoio à ciência, de mais humanidade, menos ganância e propostas que busquem transformar a lógica do ganho financeiro imediato a qualquer custo em ações mais inteligentes que preservem os recursos naturais e valorizem o direito à vida da coletividade.

Que em um momento como este, onde o mal e o bem emergem subitamente, possamos refletir sobre nossos verdadeiros valores. Imaginemos, pois, que o alarme ora disparado veio nos despertar para uma séria de coisas que ainda deixamos de fazer em prol do nosso ambiente. Talvez o gesto mais nobre de todos seja o de olhar para dentro de si mesmo, entender que somos parte integrante da natureza e, a partir disso, fazer o que está ao nosso alcance, por mais simples que seja.

Para que essa transformação de fato aconteça é preciso nos mantermos calmos, mas firmes; confiantes, mas persistentes. A virada de chave pode ser uma metáfora que nos ajude a compreender que esperança e atitude são virtudes poderosas, construídas ao longo do tempo para trazer prosperidade. Afinal, não comemos a fruta no mesmo dia que plantamos a semente.



Ricardo Almeida

Doutor em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Mestre em Inovação Tecnológica. Especialista em Gestão de Pessoas e Negociação Coletiva. Atua nas áreas de Desenvolvimento Humano e Educação Ambiental. 


* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Mulheres. O conteúdo é de total responsabilidade do autor. 


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