por Ilcéa Borba Marquez


Novela é uma narrativa literária que se situa entre o conto e o romance, cujas características principais encontram-se na simplificação dos personagens e do enredo, visando a manutenção do interesse e fácil acompanhamento aos expectadores. O horário nobre para as apresentações coincide com o jantar em família. Depois da jornada de trabalho rotineiro, a TV fica ligada e a família se encontra para o jantar. Nesse momento os personagens são introduzidos no círculo íntimo familiar, trazendo os temas centrais do enredo para as discussões diárias. Os bons autores aproveitam a realidade social que serve de aporte e suporte ao mundo cultural. 

Nessa criação de Gloria Perez – De Corpo e Alma – constam temas atualíssimos da época (1992): transporte coletivo alternativo, transplante de órgãos (coração), sequestro, conflitos de classe (subúrbio/elite), crises relacionais, deficiência nas maternidades, levando a trocas de bebês e outros que podemos colocar na categoria de coadjuvantes. 

Neste artigo pretendo, a partir de recorte temático, focar o par romântico – Bira e Yasmim – facilitando assim o desenvolvimento de ideias que me ocorrem quando ligamos a novela e o crime ocorrido durante sua filmagem. 

Bira e Yasmim se tornam par romântico e gravam cenas eróticas/amorosas que ganham o interesse e aprovação do público jovem entre os expectadores. Assim, a mídia divulga e reproduz as cenas entre eles. Revistas, noticiários, programas de rádio e tv estampam os dois contracenando, o que efetiva marketing publicitário. A fama acontece e os adolescentes buscam-nos para fotos e bailes – para enfim fazerem parte das suas vidas.  Voltando ao enredo, Yasmim está no centro de interesses de três figuras masculinas: Bira, Caio e Reginaldo – o gótico. Durante 120 capítulos impera este trio de possíveis romances e o par que efetua um relacionamento. 

Por outro lado, na vida real, Guilherme de Pádua está casado com Paula Thomaz numa forma relacional intrigante ou até mesmo desconcertante. Como exemplo, podemos lembrar as tatuagens feitas nas partes íntimas sexuais com nome de cada um; a participação direta ou indireta da esposa nos teatros e settings de gravação, ao ponto de provocar incômodo entre os atores da peça; Guilherme levava para o camarim, imagem de Nossa Senhora ou Preto Velho, que constrangia aos que o dividiam com ele. 

Durante as filmagens, quando Guilherme percebe que suas falas e participação na novela diminuem gradativamente durante as semanas, ele entra em pânico e começa a pressionar Daniela para que interfira junto a sua mãe, com o objetivo de dar maior visibilidade ao seu personagem e até mesmo modifique o final, quando Yasmim e Caio retomam seu namoro para serem o par romântico do fim da novela. A partir deste momento realidade e ficção se interpõem, borrando seus limites claros desde o início das gravações. Tudo se mistura, tudo se mescla, até que ao final de um dia de filmagem Daniela e Guilherme se encontram no pátio do estacionamento para fotos com alguns fãs e se dirigem para um posto de abastecimento. Guilherme chega primeiro e espera que Daniela abasteça, pague com cheque, para então dar uma fechada no seu carro, forçando sua parada e descida do veículo. Neste momento dá um forte soco no seu queixo, que a deixa sem sentidos. Sem perda de tempo coloca Daniela em seu Santana, que Paula dirige e assume a direção do carro da Daniela - Sequestro da jovem e do seu carro. 

Após a saída dos dois veículos, que tomam rumo ignorado, não temos informações testemunhais a não ser mais tarde, quando o advogado Hugo da Silveira vê dois veículos parados, um atrás do outro num matagal no Recreio dos Bandeirantes. Por se tratar de um lugar ermo, ele passa perto, retorna e anota as placas. Um Santana azul, um Escort preto e um casal. Dirige-se à Delegacia próxima e volta com policiais, mas nessa hora só resta um carro. Descem para analisarem o veículo parado e esbarram com o corpo de Daniela Perez já sem vida, com perfurações no peito e pescoço. 

Por volta das 21:30, enquanto a novela era exibida, Daniela foi assassinada por Guilherme e Paula. Foram 12 facadas no coração que o expõe, 2 facadas no pescoço e marcas do golpe na face. As roupas e o local do corpo não contêm sangue, que abre a possibilidade de não ser este o lugar do assassinato, apenas a desova do corpo já sem vida. 

Um fato posterior de suma importância ocorrido, que continua o crime iniciado com as facadas no peito a ponto de expô-lo: o túmulo de Daniela foi profanado por duas vezes, o que só parou depois que Gloria Perez fez uma cremação e escondeu as cinzas para evitar a divulgação do local. 

Como disse no começo deste artigo, minha intenção não é solucionar o crime, mas revelar ligações que encontro, quando penso na novela e no assassinato como parte de um capítulo da mesma. Um dos temas era o transplante de coração, quando a pessoa que o recebe torna-se a amada perdida para aquele que passa pelo processo do luto. Essa situação é comum e abordada diversas vezes por aqueles que a vivem. Não podemos nos esquecer do simbolismo cultural do coração nas experiências amorosas. Mesmo sem vida e fora do corpo, ele identifica a pessoa mantendo seus sentimentos de afeto. Os povos primitivos, nos sacrifícios religiosos, retiravam o órgão pulsante e ofereciam aos deuses ou o ingeriam para adquirir suas qualidades. 

A tentativa malograda de retirada do coração de Daniela pelos seus algozes, talvez pela testemunha que viu a cena, só os fez adiar esse objetivo. Posteriormente profanaram o túmulo por duas vezes, para enfim efetivar a ação. Dessa forma, vejo uma contaminação do real com o virtual; da vida efetiva e das cenas novelescas. Vejo a cena do crime como um capítulo da novela e o enterro da vítima como efetiva participação dos espectadores, que lotaram o cemitério e adoraram seus ídolos ao aproximarem para tocá-los.