Por Ilcéa Borba Marquez
Em maio celebramos os 80 anos da Rendição Alemã, que pôs fim às ações hostis da II Grande Guerra, condição ideal de aprofundar no entendimento desse fato cultural que ressoa até hoje. A presença brasileira no conflito mundial não se restringiu às ações da Força Expedicionária Brasileira (FEB), abrangendo significativamente os preparativos para o Dia da Decisão (Dia D – 06/06/1944). O nordeste brasileiro – Rio Grande do Norte – Natal e Parnamirim – foi palco de grande parte da movimentação aérea dos aliados a caminho da região em conflito. De 1943/1944 essa foi a base aérea fora do território estadunidense. Temos em Parnamirim o Centro Cultural Trampolim da Vitoria com mais de 1000 objetos e/ou documentos que registram minunciosamente este período da nossa história. A partir deste relacionamento com os combatentes norte-americanos, a região introduziu até mesmo no seu cardápio o hambúrguer, hot-dog e milk-shake.
O fim das hostilidades na II Grande Guerra foi marcado pela cisão e por desencontros. Os aliados não se aliaram para o fim das hostilidades. Cada país envolvido tentava marcar as assinaturas num lugar e numa data. Os alemães queriam se render aos norte-americanos e a Rússia queria assumir papel de liderança para o fim dos ataques e receber os exércitos derrotados para mostrar em desfile a face dos vencidos. Na Rússia este desfile e a data comemorativa foi fixado para 09/05/1945.
Em carta dirigida a Albert Einstein, Freud levanta a seguinte questão: Por que nos revoltamos tanto contra a guerra, o senhor, eu, e tantos outros, por que não a aceitamos como uma entre tantas necessidades penosas da vida? “Ela parece, porém tão conforme a natureza biologicamente bem fundada, praticamente inevitável”. Estendendo a questão: podemos conceber uma civilização mundial? Uma comunidade que se confundiria com a humanidade, onde poderíamos realizar a máxima cristã; amar o próximo como a nós mesmo?
A falta do estrangeiro-odiado, localizado logicamente no exterior, só pode ter como consequência o retorno do ódio para o interior da comunidade. É o que ilustra na cultura contemporânea a figura do “excluído”: o estrangeiro-entre-nós, que inaugura um novo processo: a necessidade de excluir o excluído. Mas, para onde? Posto que não há outro espaço.
Existe uma passagem em Dom Juan – Molière, já muito debatida, que ilustra sobremaneira esta questão: Signarelli e Dom Juan, cavalgando numa floresta deserta, encontram um pobre que pede caridade. Após ter proposto ao pobre infeliz oferecer-lhe uma moeda de ouro à condição que este consinta, jurando, uma blasfêmia, obtém em troca uma recusa indignada do pobre: “Não, senhor, prefiro morrer de fome” ao que Dom Juan responde: “Vá, vá, eu te dou em nome do amor da humanidade.” A resposta da caridade ordinária é feita em nome do amor por si mesmo do personagem, quer dizer benefício do doador. Ou seja, o dom excluindo o contra-dom, abole o destinatário como sujeito, reduzindo a humanidade à posição de um gigantesco formigueiro indiferenciado, onde não se coloca a questão da escolha e da liberdade. Ele matou o outro na sua dimensão de sujeito.
Retomando a questão que questiona o porquê da guerra, refletimos que são três as paixões do sujeito: indiferença, ódio e amor. Na origem do sujeito encontramos uma vontade de manter uma relação de indiferença em face do mundo. O desejo de destruir – função do ódio – substitui a tendência paradoxal de se manter num estado de indiferenciação. Não é um querer morrer, mas um estado de “como morto”. O desejo de morrer nada mais é do que, na realidade, o desejo de que não aconteça mais nada de voltar ao estado de inanimado. De sucumbir ao sono dos justos. O desejo de viver segue o de indiferença, porque não há vida sem morte, não há morte sem vida. É o princípio que a civilização toma para si para regulá-lo. Daí a compreensão que a indiferença é o verdadeiro sentimento que se opõe ao amor e não o ódio. Tanto o amor quanto o ódio provocam uma movimentação em direção ao outro. Amor e ódio provocam movimentos de aproximação, indiferença é imobilização ou imobilidade. Ou seja, o período de guerra significa o máximo de movimentação destrutiva, é o campo do ódio, por excelência, onde todos combatentes são chamados a matar e destruir tudo que for possível, na maior parte das vezes usando armas semelhantes. Ao final, nos deparamos com o vencedor e com o vencido, quando então concluímos que o vencedor é o justo e o vencido o injusto, conclusão capaz de aplacar culpas generalizadas, mas totalmente distantes da verdade que motivou todo o embate destrutivo.